22 de ago. de 2013

Pinga, querida

E quando te inundar sede-desejo do deságue:
pinga, querida.
Não te derrames desvario como Amazonas
de foz selvagem em pororoca mui barrenta.
Aporta no poeta
a pedir paz aos passarinhos:
quando fluir o desemboque de tentar ser-me afluente,
pinga, querida.
Não oceanes nesse mangue
de meu marginal amor.
Pinga gota e gota
do teu mel de-va-ga-ri-nho,
que a vida é rio que corre leve
e, quanto mais leve, mais linda.

Mergulhão

18 de ago. de 2013

Bonequinha de luxúria

O batom cereja de Nina Starlet permanecia borrado. As tapas que levava também lhe desbotavam o lápis, a sombra e o cut crease aos olhos. Mas ela continuava marchando au trottoir. Salto catorze quebrado na mão de unhas compridas carmim. Vestido branco diáfano decotado. Pescoço nu denunciando cicatriz à altura da tireoide. Arranjo artesanal de camélias à la Del Rey sobre a peruca humana à la Cyndi Lauper de 1983. Ela só queria alguém que se ocupasse da virgindade que ela tinha praquele dia. Não precisava ser mágico. Afinal, algum poetinha já não disse que o amor só é terno enquanto se está duro. Ou algo assim. Pois bem. Starlet amava seus homens dessa forma. Dependente da cifra. Do terno. Do quanto fossem heteros. Os homens que mais a consumiam. Bastava valer o Gudang Garam antes do banho. A maioria era Vogue: fracos. Assim classificava homens. Batom e lápis borrados não porque os homens de Starlet eram maus. Os homens de Starlet não eram maus. Eles fodiam e trepavam e faziam sexo e amor como deveria ser. Mas os homens dos outros, sim. Esses agrediam. Starlet já estava cansada de levar na cara sem pedir apenas porque não se encaixava em moldes. E os homens dos outros agiam assim. Aos demais, se ela não concluira o Ensino Médio, não foi por conta da dispraxia. Aos demais, o quadro depressivo habitual aos trinta e seis anos não foi consequência das esfoladas de três policiais estupradores. Aos demais, a falta de batismo não foi herança da rotina de orfanatos. Esses a espancavam e ainda a chamavam puta. Esses exigiam colorismo através de cartela de boceta. Esses ordenavam que não houvesse pelos. Esses brochavam quando a calcinha não combinava com o sutiã. Esses menosprezavam os mamilos pretos. Esses abominavam o corpo gordo. Enfatizo: só esses a espancavam e ainda a chamavam puta. Puta frígida, vejam só! Putas eram eles! Os homens do povo! Puta é o povo que aceita pôr na boca o cacete da milícia. Frígido é o povo que se contenta em dedar os palhaços públicos de sua política tão somente na hora de brincarem de urna eletrônica. Puta é quem recebe garganta abaixo o que jorram os laboratórios de hipocrisia disfarçados de templos morais e não compartilha o que tem com o próximo. Jamais, meus caros. Nina Starlet não era A Puta. Ela apenas se divertia com alguns dos filhos desta. Nesses ela sentava. Era então quando Starlet acreditava golpear a sociedade. Convertia filhos de puta em homens seus. Se retornassem, elas os havia ganho. Desses, não mais apanhava. E assim o show deveria persistir. Starlet conhecia o suficiente de impostos e taxas e códigos e tributos e índices e coerções para admitir que estava à margem. Para longe da qual ela não remaria. Não agora. O relógio marcava cinco e quarenta. Cedo demais para remar desta margem. Aprazia-lhe ser bonequinha de luxúria social sem luxo. Acenou às colegas. Beijou a mãe de vida Divanna Doll. Puxou um Vogue e se foi. Nina Starlet voltou para casa. Teria de ser aos vizinhos novamente Dagmar de Buarque até o fim da novela às dez da noite.


del Praga

15 de ago. de 2013

Meretriz insônia

Eu ne-ces-si-to parar de não dormir.
Ou fazê-lo não só quando os cabelos do céu despontam ruivos.
É um problema somente à noite corpos serem atraentes
― os humanos e os celestes?
Quão estranho e interessante apenas sob Lua
a vida se tornar fluente:
só à noite algum planeta explode,
só à noite descobrem continente,
só à noite há Burton e Hitchcock;
só à noite a casa se enche de diabrete,
só à noite chove algodão-doce,
só à noite treino meu falsete,
só à noite pra Belém é vinte.
Só à noite sou onivivente.
Dormir com Sol é para galos velhos
e em demasia é mui perda de tempo;
o tempo que mal temos a contento,
pois nossos dias são miséria em hora.
Pois bem, Noite, você vence de novo:
eu necessito já cair de fato?
E a meretriz Insônia? Dorme quando?

Mergulhão

12 de ago. de 2013

Obituário

Foi uma vez o poeta
se pôr à torre a contar.
Quis o Cruzeiro do Sul
e vagar onda além-mar.

Pintou tristezas de âmbar,
deu a olhos cor-de-mel;
sempre com espírito alerta,
rasgou de santos o véu.

Aos corações foi afável:
amou de Jorge a Roberta.
Ao povo fez-se o ecoar
qu’alma a sofrer necessita.

É com desmedido pesar no presente momento que comunico a Vossa Senhoria que o supracitado poeta hoje não mais canta porque o instante a ele agora inexiste por conta do grave acidente interno que lhe sobreveio durante a demais pacata madrugada do último vinte e nove do corrente ano de Nosso Senhor: ocorre que o indivíduo perdeu-se em um beco de páginas em branco sem luz e se pôs a correr em busca de inspiração até bater a cabeça em um tinteiro-tonel sem nanquim e a partir de então padece de tamanho bloqueio que infelizmente lhe impede de concluir o

Mergulhão

9 de ago. de 2013

Ah, braços!

Eu gosto daquele abraço
que cola pele com pele
sob o suor ou na chuva
no meu chegar ou sair.

Eu gosto daquele abraço
que é dado com real gosto
sem medo de ser tão bobo
a quem não sabe sentir.

Eu gosto daquele abraço
que é mais do que quatro braços,
pois é o abraço de urso
que esmaga ou gira a cair.

Abraço mesmo de fato
é afeto que em si não cabe:
enlace que, peito a peito,
faz coração eclodir.

Mergulhão

7 de ago. de 2013

Sobre tato e consumo

Só se conhece uma pessoa quando ela está nua. Despida de marcas e discursos verbais. Então quem fala é o corpo. A boca apenas geme e reproduz os espasmos dos sons do corpo. A boca sai da categoria de corpo físico e paira apenas. Quando a pessoa está nua diante de outra nenhum empecilho pode atravessá-la. Nem projétil em formato de conceito ou juízo ou dogma ou lei. Certamente é indispensável que a segunda pessoa proponha-se igual nudez. Isto é ser humano: corpos em diálogo. E basta. Tem-me sido assim Augusto. Ele nu diante de mim era o ser mais vulnerável de todos. Vulnerabilíssimo. E pujante. Como eu. Consumir Augusto era bom. Não era como Glória. Glória é macia demais. Mais do mesmo demais por enquanto. O contexto do uso de Augusto era áspero. Os lábios de Augusto eram o oráculo que eu – nunca de deuses – profanava. O corpo espelhar em atrito recíproco. Éramos objeto um ao outro. Eu sempre discordei do ato de moldar outrem mero objeto. Mas não há erro ou desconforto desde que a utilização seja mútua. Eu amava enfim se era isso o amar porque amar é um contrato. Amar é jogo de interesse. Interesse na vontade de manipular corpos-objeto. O que daí por fim derive é acidente. Dentro de Augusto noite adentro ele me pede para continuarmos nesse cíclico trauma que seria eu vivê-lo e ele a mim. Eu neguei. Eu não poderia me acidentar rotineiramente ainda que o objeto Augusto me fosse satisfatório. Eu deveria me disponibilizar sempre pessoas nuas. Eu ainda necessitava me regozijar com minhas ocasionais glórias e meus brinquedos faustos e meus diários brunos. Eu me despedi de Augusto. Eu o conhecia afinal. Não havia mais por que me prostrar no momento. Só se conhece uma pessoa quando se mapeia às cegas cada orifício seu. Eu já compreendia todos os poros de Augusto. Eis que acorda nova noite e me surge outro corpo augusto que se propõe reproduzir os espasmos dos sons do meu corpo. Mais uma vez tatearei conhecimento porque alguém só se admite como pessoa quando se está nu diante de outra.

Mergulhão

Também

Sangue de gay é vermelho;
o de um não-gay é também.
Mulher sente dor quando cai;
quem não tem seio também.
Criança sem lar pede pão;
a bem guardada também.
Branco empregado é capaz;
negro no mundo também.
Filho de Deus possui fé;
quem louva deuses também.
Jovens precisam de abraço;
velhos carecem também.
Por tudo isso, bom homem,
é são ser humano também.

Mergulhão