14 de mar. de 2015

Continuum

Adianta clamar saudade se
atendo pelos mesmos números e
me escondo sob mesmo endereço e
jogo o lixo no mesmo container e
corro em atraso pelos mesmos ônibus e
pedalo por ali sábados à mesma hora fria e
tomo o mesmo Starbucks toda manhã e
tenho a mesma caixa-postal em desuso e
roubo orquídea do mesmo quintal na volta da padaria e
deito àquela mesma árvore para reler Austin e
encomendo vinis no mesmo sebo e
bolos na mesma tia e
palmilhas no mesmo tio e
a cidade tem o mesmo mapa e
tua chuva é a mesma minha e
odiamos o berro do mesmo galo às cinco e
imprensamos os mesmos vizinhos
há ermos muitos tantos anos?


Mergulhão

Clepsidra (ou O quando das horas)

Não digo que estou ao teu lado
porque estar é ponteiro de segundos
ou força pela qual areia cai.
Sou teu lado.
Ser lado teu me faz costela
de encaixe perfeito no abraço por trás
que guarda teu coração.
Só ao lado teu sou o porquê do relógio
ou a ampulheta dos fatos.
O olhar vago do ontem
e o se do pós-próxima aurora.
A progressão desgeométrica
dos minutos anárquicos
sem medidas lá:
teu lado.
Eu sou aqui
ainda que não todo dia;
mas sempre.


Mergulhão

8 de mar. de 2015

Amélie

Nunca em minha ainda curta vida, eu, verde e imberbe, cri na dita inspiração.
Intuía, pois, o fazer-poético apenas como sacro-ofício de abrir pergaminho sob
luz de vela e mergulhar pena em sangue para valsear àquelas fibras sentimentos
zaramelamente* à chance certeira de golpear no espírito algum vão outro eu
inconsciente errante do existir. Cada alexandrino que me escorria a mão era
lispectoriano; afinal, versos meus. Todavia, sem a quem nem por quê, eu ouvia.
Eis que ao fim do recitar a leitora cativada em choro perguntava pela musa.
“Ninguém” eu respondia. “Deveria ser-me alguém um bom motivo ao coração?”
“Evidente, meu poeta! Pois não pode haver mel sem abelhas, cruz cristã sem orbe,
lótus sem vida eterna, Alcorão sem xeque e perdoar sem prévios ferimentos;
assim deves ser tu também causalidade essencial a quem te tem e a quem é teu.”
Rumei, portanto, atrás dessa condenação de morte por reticência e etecetera.
Aonde, porém, eu teria de ir reclamar criação se a agulha do destino mal me tecia?
Noites de agonia de monarca ou ladrão que (só) ao fim das horas se escusa,
já que nem literatura alheia me limava. Senti-me o Éden da divina punição...
Então sentada ao balancinho que pendia de um caramanchão de lírio e sebe
irradiava uma moça em chita rosa, cabelos chanel, íris de raros pigmentos,
riso de minguar lua crescente; não Capitu de Escobar, mas Marília d’eu-Dirceu.
“Amélie, meu senhor” deu-me a mão e revelou-se a deusa em terra que se pusera
dia após dia a se embalar a minha esquina quando aos lusco-fuscos já fulgia
o céu de astros testemunhas do porquê. Minha poesia — antes perfeita, mas obtusa:
sensível de menos, vazia demais, farsante deveras — agora sofre de motivação
sem cura, como o torpor de quem cai em evitável profundo poço de paixão e o bebe
a dois transtornados goles compulsórios. Porque ela me alimenta, dias sedentos
não mais me são problema, posto que a tolice da mera rima pela rima evanesceu.
Toda estrofe em honra e cada prosa em glória à Amélie. Fim. P.s.: quem me dera
os meus ouvidos jamais descobrirem que depois dos muros de meu quarto não havia
sequer o caramanchão com balanço e, dentro de mesma vil cela, uma cabeça confusa.


de Mergulhão
à Laranjinha

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* zaramelo (adj.): gago